sábado, 1 de dezembro de 2007

O paralelismo

Na Idade Média, os procuradores do Rei, antepassados do Ministério Público, tinham como incumbência específica, uma dupla função de defensores dos interesses do Rei e dos da Fazenda, com uma atribuição crescente de representações de interesses sociais.

Em Portugal, no início do século XX, o Ministério Público, tinha como atribuições, a representação da Sociedade nos tribunais, a defesa da propriedade nacional, a acusação e a perseguição de crimes, a cobrança coerciva de créditos do Estado e a vigilância escrupulosa e permanente da aplicação das leis e ainda a de aconselhar o Governo. – Decreto de 24.10.1901.

A Constituição do Estado Novo, acrescentou a isto a representação do Estado nos tribunais.

A magistratura do MP, no tempo do Estado Novo, era amovível, responsável, organizada hierarquicamente, dependendo de modo estreito, do Ministro da Justiça e orientada directamente pelo PGR.

Não obstante esta dependência, hierarquicamente rígida, do Governo, o MP era ainda assim, considerado uma magistratura paralela à dos juízes. Tal e qual. O artigo 172º do Estatuto Judiciário consagrava que “a magistratura do Ministério Público é paralela à magistratura judicial e dela independente, não podendo os representantes do Ministério Público receber ordens ou censura dos juízes.”

No artigo 188º do mesmo Estatuto Judiciário, do início dos anos sessenta e actualizado em 1971: “No desempenho da função é vedado aos magistrados do MP interferir em assuntos pertencentes à administração do Estado ou das autarquias e invadir as atribuições das autoridades administrativas.”

Os magistrados do MP, antes de 25 de Abril e ainda um par de anos a seguir, eram uma magistratura vestibular da judicial. Aprendiam, como agentes do MP, o ofício e a nobre arte da função de julgar, a que acediam depois de prestarem provas públicas. Os juízes, nessa altura, antes de o serem, já tinham sido magistrados do MP…e podiam voltar a ser, aliás, num outro grau hierárquico. Tal como hoje, em que os procuradores gerais adjuntos, podem aceder aos Supremos tribunais.

Depois de 25 de Abril, com a Constituição de 1976, o MP assumiu um estatuto semelhante ao dos juízes, no que se refere à inamovibilidade do cargo, à gestão dos quadros e carreiras e ainda a aspectos ligados ao exercício da profissão, no que a liga ao funcionalismo público: o apoio do Estado na saúde, doença e prestações sociais. Este vínculo, mantém-se actualmente, como não podia deixar de ser, em relação a quem depende do Orçamento do Estado para ganhar a vida.

A ideia básica, fundamental , do actual estatuto do MP, é simples de enunciar: garantir da melhor forma possível, a aplicação do preceito constitucional da igualdade de todos os cidadãos, perante a lei, - mas mesmo todos, incluindo por isso os que fazem parte dos poderes do Estado.

Os casos mediáticos, dos últimos anos, envolvendo pessoas desses poderes, conferem uma imagem precisa da necessidade estrita de um MP efectivamente autónomo do poder político e também dos tribunais que decidem e dizem o Direito, administrando Justiça. A independência da magistratura judicial, depende assim e em larguíssima medida, do grau de autonomia do MP. Por motivos óbvios e que no entanto, muitos juízes, de recente geração, se recusam a ver e a admitir.

A ideia do MP, ao longo dos anos que se seguiram à Constituição de 1976 , foi sedimentando um paradigma que tem sido o nosso.

Em 1984, com a saída do PGR Arala Chaves e a entrada de Cunha Rodrigues era assim definido:

O espírito e a missão do MP não são mais os de um bloco fundado numa rígida vinculação hierárquica até ao Poder Político para levar suspeitosamente até aos Tribunais os interesses ou as opiniões deste Poder. (…) Daí a judicialidade do Ministério Público, reconhecida na doutrina moderna – daí o fundamento para reconhecer que o MP independente do Poder Político e apenas obrigado a pautar-se por critérios de legalidade estrita, tem as características de órgão de justiça. Não são privilégios que estão em causa, mas direitos inerentes à função. “ Conselheiro Arala Chaves, já falecido, antigo PGR, por ocasião do almoço de homenagem na sua despedida do cargo, em 25.5.1984.

Também o presidente da República de então, dizia:

E para que as magistraturas judicial e do Ministério Público pudessem, na realidade, assumir-se como garantes da independência dos tribunais, a Constituição conferiu-lhes o estatuto de autonomia e de independência, por forma a que a realização da justiça não pudesse ser condicionada, em circunstância alguma, por critérios de conveniência ou de interesses políticos”. Ramalho Eanes, presidente da República, por ocasião da tomada de posse de Cunha Rodrigues, como PGR, em 11.9.1984.

Cunha Rodrigues, não disse outra coisa, durante os anos em que esteve à frente da PGR. Apesar de tudo, definiu sempre, dignificando-o, em entrevistas e discursos vários, o Estatuto da magistratura do MP.

Tendo estas ideias presentes, que sentido faz, actualmente, a querela judiciária que se estabelece para saber se o MP faz parte da Administração Pública, ou pode mesmo ser funcionalizado, ao contrário dos juízes?

A memória de certos indivíduos é muito curta. Principalmente, quando se assumem como guardiães dos reposteiros do Poder político. Seria bom que fossem apontados como tal, para que o povo perceba onde estão, o que pretendem e de onde vieram, afinal de contas. Em nome da transparência democrática e para que não continuem a enganar incautos. São sempre os mesmos: hoje defendem o contrário do que ontem afirmavam como a verdade indiscutível; amanhã, não se sabe. Refiro-me a Vital Moreira, claro.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

O MP é um órgão judicial?

Retirado daqui, fica outro excerto sobre a natureza do Ministério Público português, num momento em que se discute em blogs, como o In Verbis, o poder judicial,visto, maioritariamente, pelos juízes.
A noção que se obtém das leituras de certas intervenções de juízes é a de uma patente hostilidade, acompanhada de algumas aleivosias, para com a magistratura do MP e uma reivindicação de exclusividade de pertença ao poder judicial, confundido em pleno com o exercício jurisdicional, para afastamento dos "rivais".

Nem pelo facto de a Constituição inserir no Título V, relativo aos tribunais, os artigos sobre os estatutos dos juízes e também os do ministério público, isso serve para desarmar os argumentos, dos secessionistas do exclusivo poder judicial.

As razões para que tal não seja assim, podem ler-se com os seguintes argumentos:

O Ministério Público é o órgão do Estado encarregado de representar o Estado, exercer a acção penal e defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar (artigo 1º da Lei Orgânica do Ministério Público).

Em Portugal, o Ministério Público caracteriza-se pelo seu poliformismo essencial.

As atribuições do Ministério Público distribuem-se por diversos planos, em que se inclui o exercício da acção penal, compreendendo a direcção da investigação criminal, a promoção da legalidade, a representação do Estado, de incapazes e de incertos e o exercício de funções consultivas.

A estes sinais identificadores, junta-se o da sua unidade organizativa. Salvo os tribunais militares, o Ministério Público está estruturado uniformemente em todas as jurisdições.

A história da instituição evidencia que se trata de um modelo com raízes muito antigas, cuja evolução se realizou principalmente segundo as exigências da justiça e da administração do país.

O Ministério Público goza, hoje, de autonomia orgânica e funcional, estando excluída a interferência de outros poderes na sua acção concreta, exceptuados os casos em que actua como advogado do Estado, isto é, quando defende e sustenta interesses privados ou específicos do Estado.

O problema da natureza do Ministério Público tem sido principalmente elaborado a partir das suas atribuições no processo penal.

São estas atribuições que lhe conferem um estatuto de poder, já pelas faculdades e iniciativas de coerção que lhes são próprias, já pelas características processualmente cominatórias do acto de acusação. Foram também elas que o deslocaram para áreas próximas de um dos clássicos poderes do Estado - o executivo - a cuja tutela pertence a segurança e a ordem pública.

Mas daqui se vê que não é possível falar da natureza do Ministério Público sem abordar, ainda que perfunctoriamente, a questão do seu lugar constitucional.

Historicamente, as razões expendidas a favor da dependência governamental do Ministério Público radicaram em dois principais argumentos: o de o Ministério Público assumir o papel de parte na estrutura dialéctica da decisão e de ser necessário garantir um equilíbrio que ficaria em causa se lhe fosse atribuída autonomia; e o de uma eventual autonomia poder tornar o governo "perigosamente irresponsável" perante a nação num domínio tão importante como é o da política criminal.

Descobre-se, neste enunciado, uma argumentação que aceita, como pressuposto, a qualificação do Ministério Público como parte para, depois, se perturbar perante a dificuldade da sua inserção em um dos dois poderes do Estado referenciáveis - o executivo e o judicial. E como a integração no poder judicial de uma parte representaria uma contradição nos termos, a resposta torna-se aparentemente fácil.

No plano da responsabilidade política, os argumentos são também histórica e geograficamente referenciados.

As interferências políticas nos processos criminais eram fáceis no tempo em que o poder se organizava de uma forma homogénea e a pluralidade social era lábil. Então, era possível preparar intervenções no segredo dos gabinetes, fazê-las aceitar pelas vários escalões de uma hierarquia e manter tudo no desconhecimento do cidadão comum.

Mas a realização da política criminal através do processo tornar-se-á cada vez mais delicada numa época dominada pelo mito da transparência, cujos reflexos estão constantemente presentes nos jogos de poder e na formação da opinião pública.

De resto, o espaço exposto àquelas interferências nunca foi grande nos sistemas que preconizam o exercício obrigatório da acção penal. Contrariamente ao princípio de oportunidade, que possibilita uma selecção de casos e o estabelecimento de prioridades, o princípio de legalidade deixa ao Ministério Público uma margem muito reduzida de discricionariedade.

O problema da natureza do Ministério Público está, hoje, por estes motivos, mais descomprometido com razões que são, na sua rigorosa acepção política, de Estado.

Elaborada numa época em que já se estava longe de uma concepção rígida da organização do Estado, a Constituição da República estabelece um princípio de separação e interdependência de poderes e define o Ministério Público como órgão integrado nos tribunais e dotado de autonomia e estatuto próprio.

Este estatuto tem de obedecer ao programa fixado pela própria Constituição, em que se inscreve o facto de a Procuradoria-Geral da República - e não o Governo - ser o órgão superior do Ministério Público.

Está-se, pois, perante um regime que exclui a dependência governamental e rejeita, de igual modo, o paradigma que dominava as representações tradicionais sobre a posição do Ministério Público.

Um órgão autónomo, constitucionalmente sistematizado no título relativo aos tribunais, com regras de organização, estatuto e funcionamento fundados em princípios que caracterizam uma magistratura, prosseguindo fins que condicionam a intervenção jurisdicional ou visam conformá-la com os níveis de normatividade a que está sujeita, não pode deixar de ser um órgão do poder judicial.

Mas, com isto, não se esgota a questão.

Organizando-se formalmente o Ministério Público como instituição judiciária e constitucionalmente integrada nos tribunais, não ficam, mesmo assim, resolvidas todas as questões de qualificação que as suas atribuições podem justificar.

Com efeito, a própria Constituição admite (artigo 219º ) que, juntamente com as competências que lhe são concretamente cometidas, pode o Ministério Público ser incumbido da defesa de outros interesses determinados por lei.

É certo que a circunstância de o Ministério Público estar organicamente integrado nos tribunais e o quadro de competências que a Constituição expressamente enuncia parecem impor que aqueles interesses devam possuir uma relação de afinidade com o enquadramento e os fins institucionais do Ministério Público. Não seria, porventura, constitucional que a lei cometesse ao Ministério Público uma função puramente administrativa que nada tivesse a ver com a lei e a administração da justiça.

Mas a plasticidade daquele princípios é manifesta e deixa em aberto a possibilidade do alargamento de atribuições do Ministério Público que, já hoje, ultrapassa o núcleo de funções que são exercidas perante as jurisdições.

Nesta conformidade, parece oferecer-se à partida como desnecessária e estéril qualquer argumentação que pretendesse demonstrar a natureza jurisdicional das funções exercidas pelo Ministério Público.

Na acepção técnico-jurídica de jurisdição, isto é, como actividade que define, com força de caso julgado, o direito aplicável ao caso, o Ministério Público não é um órgão jurisdicional.

Mas são judiciais as suas atribuições. Isto é, realizam-se segundo princípios, fins, objecto, organização e estatuto próprios do poder judicial.

A esta construção, recolhida pelo legislador constitucional, não foi certamente estranha a circunstância de as atribuições do Ministério Público se concretizarem, por um lado, numa função de iniciativa condicionante da intervenção dos tribunais em áreas importantes de afirmação da soberania e de manutenção do Estado de direito, e, por outro, constituírem um instrumento de auto-limitação do poder judicial essencial num Estado fundado na legalidade.

Verifica-se, por outro lado, existir uma recíproca influência entre as aquisições de índole constitucional e as que foram sendo adoptadas no processo penal.

Já anteriormente a estas reformas se podia entender, com Figueiredo Dias, que "a posição do Ministério Público no processo penal se define em concordância com os princípios aplicáveis no domínio da administração da justiça; trata-se de um órgão autónomo desta administração - autónomo, no sentido de independente dos tribunais, embora com eles material e funcionalmente conexionado, e dotado de uma estrutura e organização próprias - cuja actividade se não deixa reconduzir exactamente nem à "função executiva comum" nem à "função judicial".

O Ministério Público está hoje organizado como uma magistratura processualmente autónoma em dois sentidos: no da não ingerência do poder político no exercício concreto da acção penal e na concepção do Ministério Público como magistratura própria, orientada por um princípio da separação e paralelismo relativamente à judicatura.

Esta concepção é reafirmada em vários passos pelo Código de Processo Penal: ao elaborar o princípio de objectividade (artigo 53º), na aplicação aos magistrados do Ministério Público das disposições relativas a impedimentos, recusas e escusas do juiz (artigo 54º), na obrigação do Ministério Público investigar à charge e à décharge (artigo 262º), na exclusão do Ministério Público das regras sobre conduta de advogados e defensores (artigo 326º) e no reconhecimento de legitimidade para recorrer no exclusivo interesse do arguido (artigo 401º).

Encontrado o conceito de órgão de justiça como aquele que melhor exprime a posição do Ministério Público no processo penal e também a sua natureza, ficam por equacionar os problemas de qualificação que resultam de outras atribuições que, não sendo tão determinantes, têm, pela sua variedade e amplitude, um potencial considerável de identificação.

Se percorrermos estas atribuições, acabaremos por concluir que todas se reconduzem à realização da justiça ou à promoção e defesa da legalidade e, em qualquer caso, através de uma forma vinculada e sujeita a regras estritas de estatuto.

É certo que a configuração interna da actividade que concretiza aquelas atribuições é materialmente administrativa, se, por oposição, assim devermos classificar uma actividade que não visa a declaração do direito ao caso.

Mas não é isto o fundamental para determinar ou excluir a natureza judicial de uma actividade.

Se despojarmos a actividade dos tribunais da sua intencionalidade final, observamos que ela tem um conteúdo e uma ordenação essencialmente administrativos, não se distinguindo, na maioria dos actos e das fórmulas, da que é realizada pelo Ministério Público. E, de resto, em determinados casos nem sequer pode afirmar-se que a actividade dos tribunais tem por finalidade a declaração do direito.

O que é decisivo na actividade dos tribunal e na actividade do Ministério Público é o plano de actuação e os fins a que uma e outra estão pré-ordenadas e se dirigem.

Ora, tanto o plano como os fins de uma e outra actividade são intrinsecamente judiciais, porque, estando sujeitos a um estatuto definido para o poder judicial, operam (melhor, cooperam), numa relação de necessidade, com a realização última das atribuições dos tribunais.

Concluiremos, assim, no sentido de que o Ministério Público é um órgão judicial, integrado, com autonomia, no poder judicial, embora dotado de atribuições que não são materialmente jurisdicionais nem se confinam às exercidas pelos tribunais.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Para compreender melhor o MP português

Do sítio da PGR, respigam-se estes elementos de esclarecimento:
Emblematicamente, a magistratura do Ministério Público define-se por três grandes princípios: o da responsabilidade, o da hierarquia e o da estabilidade.
A responsabilidade "consiste em os magistrados do Ministério Público responderem, nos termos da lei, pelo cumprimento dos seus deveres e pela observância das directivas, ordens e instruções que receberem".
Contrariamente ao que, por vezes, aparece referido, a responsabilidade não corresponde a uma diferença específica entre a função do juiz e a do Ministério Público, havendo situações históricas (a certa altura, a legislação nacional foi exemplo disso) e sistemas de direito comparado (casos, nomeadamente, da Espanha e da Itália) em que o juiz está igualmente sujeito ao princípio da responsabilidade.
O que é então, a autonomia do MP?
É a vinculação a critérios de legalidade e objectividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados e agentes do Ministério Público às directivas, ordens e instruções" previstas na Lei Orgância do MP.
Por outro lado, se os juízes têm de ser independentes e imparciais, os magistrados do MP, serão isentos e objectivos.
A isenção traduz-se no dever de os magistrados do MP, promoverem e decidirem segundo uma ética de procedimento enformada pela lei e pelas normas profissionais que dela decorrem.
A objectividade traduz-se na obrigação de actuar sem uma perspectiva unilateral dos factos e do direito, devendo adoptar posições representativas da realidade que podem chegar ao ponto de alegar em benefício da defesa e investigar à charge e à décharge.
A hierarquia do MP, ao contrário do que alguns pretendem, não tem um significado de subordinação total e absoluta. Tem um sentido preciso ligado a necessidades impostas pela natureza das funções e por um objectivo de democratização da administração da justiça.
Exercendo funções de iniciativa e acção que, até por razões de celeridade, reclamam uma actuação unipessoal (os órgãos colegiais estão sujeitos a um processo mais moroso de formação da vontade), é necessário que haja mecanismos que, de forma preventiva ou a posteriori, acautelem a dispersão de procedimentos.
Por outro lado, é especialmente por intermédio do Ministério Público que se asseguram as finalidades de uniformização da jurisprudência e de igualdade dos cidadãos perante a lei e a justiça. Por via dos recursos (particularmente dos recursos para uniformizar jurisprudência e de constitucionalidade), o Ministério Público potencia a unidade do direito e a igualdade dos que recorrem aos tribunais.
Cabendo ao Ministério Público amplos poderes de iniciativa que cobrem praticamente todas as áreas da vida em sociedade, a ausência de hierarquia poderia significar a multiplicação de entendimentos e a colocação dos cidadãos numa situação de verdadeira desigualdade.
A hierarquia permite evitar ou resolver a fragmentação de procedimentos ou de correntes doutrinais no interior do Ministério Público e, ao uniformizar as iniciativas desta magistratura, previne e remedeia a divisão da jurisprudência.

Outra característica estrutural da magistratura do Ministério Público é a sua unidade e indivisibilidade. Tal significa que todos os magistrados que fazem parte da mesma comarca, departamento ou serviço têm igual competência para exercer funções que estejam cometidas a esse escalão hierárquico.
É este o sentido da hierarquia e não aquele que Vital Moreira, e outros, ardilosamente, lhe pretendem conferir.
Além disso, o MP beneficia também de um princípio da estabilidade. Tal significa que os magistrados do Ministério Público não podem ser transferidos, suspensos, promovidos, aposentados, demitidos ou, por qualquer forma, mudados de situação senão nos casos previstos naquela lei.
Esta garantia, consignada em favor dos magistrados do Ministério Público, e para benefício da isenção e objectividade que só podem garantir melhor os direitos dos cidadãos, tem um conteúdo semelhante à inamovibilidade reconhecida aos juízes. Aliás, são os próprios Gomes Canotilho e Vital Moreira, quem ensinam que a referida garantia constitui não só uma reserva de lei quanto às excepções à inamovibilidade ou estabilidade como também a exigência de uma justificação adequada para essas excepções.
O paralelismo dos magistrados do MP em relação aos juízes, estabelecido estatutariamente, tem um significado e alcance precisos:

É estabelecido segundo os vários escalões hierárquicos: o procurador-geral da República tem categoria, tratamento e honras iguais aos do presidente do Supremo Tribunal de Justiça e usa o trajo profissional que compete aos juízes conselheiros; o vice-procurador-geral da República tem categoria, tratamento e honras iguais aos dos juízes do Supremo Tribunal de Justiça e usa o trajo profissional que a estes compete; os procuradores-gerais adjuntos têm categoria, tratamento e honras iguais aos dos juízes de Relação e usam o mesmo trajo profissional; os procuradores da República e os delegados do procurador da República têm categoria, tratamento e honras iguais aos dos juízes dos tribunais junto dos quais exercem funções e usam o trajo profissional que a estes compete. “

terça-feira, 13 de novembro de 2007

O poder dos juízes

As questões recentes de uma pretendida divisão das magistaturas ( judicial e MP) , e uma eventual funcionalização do ministério público, ligam-se aos poderes do Estado e à sua divisão e distribuição.

As doutrinas de divisão dos poderes distinguem os mais importantes âmbitos funcionais do Estado e as competências com ele relacionadas, exigindo a criação de órgãos próprios para cada um destes âmbitos funcionais. Cada um destes órgãos deve limitar-se, por princípio, à função que lhe é atribuída”. (…) O que interessa em último termo é impedir a concentração de poder nas mãos de uma e só pessoa” (…) “A tarefa típica da jurisdição é a função de garantia do direito. A jurisdição, diz, em nome da própria realização do direito, o que é justo”. “Nas democracia ocidentais, a divisão de poderes é considerada como um princípio fundamental, mas não é concretizada rigorosamente de acordo com o seu modelo de tipo ideal. Em geral, só é estritamente observada a independência dos juízes face a intromissões do executivo.(…) Em estados parlamentares, o governo e a administração não estão de modo algum, livres da intervenção do poder legislativo(…) o partido político mais forte, forma governo e a maioria no parlamento, dominando ambos os órgãos. Esta apropriação partidária do governo e da maioria parlamentar conduziu a que, facticamente, o controlo parlamentar tenha passado em larga medida para a oposição.” “O poder judicial participa, através da interpretação do texto da lei e da integração de lacunas legais no processo de tornar mais preciso e completo o direito legislado. As interpretações e o desenvolvimento do direito aberto podem, sob a forma de jurisprudência constante, consolidar-se ao ponto de alcançarem uma possibilidade de execução fáctica equivalente a uma interpretação legal ou a uma outra qualquer norma legal.” -Reinhold Zippelius, Teoria Geral do Estado, 1997, 3ª edição da Gulbenkian.


Assentes na noção de que o poder judicial é um dos poderes do Estado, em equação com os demais e com um perfil que realça a função de garantia do direito, importa saber em que consiste este poder judicial e quais as características exigíveis à respectiva função.

A independência, será talvez a mais importante. E porquê? Naturalmente por causa da necessidade de conservar uma estrita imparcialidade e uma terciariedade na apreciação e julgamento dos casos concretos. Mas também compaginada com a possibilidade de os juízes poderem ser nomeados por concurso ( e não por eleição), assumirem a posição de funcionários do Estado, capazes de serem gestores de uma função que é pública e que desenvolvem de modo vinculado e sem estarem ainda assim sujeitos a qualquer controlo de mérito nas decisões. Estas noções, são aliás as que resultam do sistema judicial italiano, tendo sido respigadas do sítio do Conselho Superior da Magistratura daquele país.

Esse mesmo Conselho, acolhe os magistrados ditos “ordinários”, os que se acolhem sob a organização do referido Conselho e que abrange a jurisdição penal, promovida pelo ministério público e ainda a civil que abarca os direitos inerentes a relações entre privados ou entre estes e a administração pública.

O sector da jurisdição penal, parte da promoção dos magistrados do ministério público, também eles pertencentes à magistratura ordinária e ao referido Conselho Superior que é único.

Alguém duvida da independência, qualidade, isenção e imparcialidade da magistratura italiana? Acaso houve outro país na Europa, onde foi possível substituir toda uma classe política profundamente corrupta, por efeito de um processo que tomou o nome prosaico de “Mãos Limpas”? Acaso alguém colocou em dúvida a isenção, imparcialidade, independência e autonomia dos magistrados que o instruíram, do ministério público italiano e a dos juízes que depois o julgaram?

Porque é que em Portugal as coisas são diferentes e se assiste actualmente a uma clara ofensiva do poder político contra o poder judicial, com as últimas manifestações, reflectidas numa lei que pretende de algum modo assimilar os magistrados ao funcionalismo público comum?

Principalmente, por que razão especial, continua a haver muitos juízes que se sentem mal acompanhados na respectiva e específica função de julgar, tendo a magistratura do ministério público, estatutaria e profissionalmente, em paralelo?

Como é que se chegou aqui, a este ponto de viragem na estruturação das magistraturas?

O constitucionalista Vital Moreira, em artigo no Público, acaba de desdizer o que escreveu em 1993, ao considerar o Ministério Público, como a segunda componente, pessoal, dos tribunais. Acha agora, que não é assim e que afinal o ministério público pode muito bem integrar-se na função pública mais corrente e comum, ao contrário dos juízes a quem concede quase como que um privilégio de separação.

Como é que o poder político pode interferir mesmo indirectamente, na função judicial que se quer independente. Por vários modos, sendo três deles destacados pela magistratura italiana:

Pela limitação do direito de acção em juízo; pela pressão externa sobre a magistratura e ainda pela criação de juízes especiais.

Estará Portugal a atravessar um período de crise com esse recorte?

Alguns sinais indicam que assim pode suceder. A desjudicialização de alguns assuntos corrente e tidos como comezinhos, a pressão exercida pelo constante confronto com a magistratura, a quem se apontam privilégios imerecidos e que apesar de nem destoarem dos concedidos aos políticos em geral, fazem eco na opinião pública, através da amplificação que recebem dos núncios e malabaristas habituais e ainda a criação de várias instâncias de mediação e a tentativa de controlar o acesso a tribunais superiores com a abertura de lugares a não magistrados de carreira.

Neste contexto que sentido faz, distinguir o ministério público, colocando-o num lugar mais consentâneo com os interesses da Administração política do Estado, retirando-lhe a autonomia que até agora tem sido constitucionalmente assegurada?

A primeira tentativa para tal efeito que se torna evidente, é a mudança no respectivo estatuto, no sentido de lhe retirar o paralelismo com a nagistratura judicial, sob pretextos anunciados: não participarem os magistrados do MP, do exercício do poder judicial. Pergunta-se: na Itália, participam? E isso traz algum problema de divisão de poderes do Estado?

Ou o contrário, com a separação das magistraturas, cortando-se o paralelismo constitui apenas um primeiro passo, para um mais efectivo e real controlo, do poder judicial no seu todo, atenuando o princípio saudavelmente democrático da divisão das funções e poderes do Estado?

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

João Coito

João Coito, morreu a semana passada. O jornalista que fora durante o Estado Novo, na Primavera marcelista, um comentador semanal de tv, no programa TV7, dirigia também, em 1970, a revista Nova Antena, dedicada a assuntos de tv, rádio e actualidade. João Coito tinha vindo do jornal República e com referências da Seara Nova. As suas prédicas semanais na tv, eram uma seca para quem esperava o que viria a seguir, como "variedades", no canal 2 da RTP, aos Domingos. Com o recuo do tempo, eram crónicas de sensatez conservadora. Mas só o tempo faz justiça a estas coisas.

O jornal O Diabo, onde assinava uma coluna semanal, de comentário, esta semana, refez o percurso de João Coito, após o advento do 25 de Abril de 1974. Nessa altura, trabalhava como jornalista no Diário de Notícias.

Logo aí, escreve O Diabo pela pena de Jorge Soares e J. Casanova Ferreira,uma alegada exigência de um plenário de tipógrafos do Anuário Comercial, empresa do grupo “DN”, e local onde João Coito nunca esteve, serviu à então administração- presidida por José Manuel Duarte, familiar de Mário Soares- de pretexto para o seu saneamento do jornal, a par do então director Fernando Fragoso, que substituiu Augusto de Castro em 1971. Era então ministro da Comunicação Social do I Governo Provisório o ex-director do vespertino República, o jornalista Raul Rego e José Carlos de Vasconcelos, os quais, mediante algum apoio contestatário interno, nomeadamente de Manuela Azevedo, pugnaram pelo afastamento de João Coito do jornal. De nada valeram as posições da redacção do DN junto do sindicato e da tutela para evitar tão injusto desfecho.” A seguir, veio Saramago, com o papel que se conhece, no PREC.

Em baixo e em imagem que se amplia com dois toc´s, fica o obituário de Salazar que João Coito admirava, publicado na revista Nova Antena de 7 de Agosto de 1970, como prova de que João Coito era leal e fiel aos seus valores e princípios.

João Coito seria eventualmente, a pessoa ideal para fazer em jornais, uma transição pacífica entre o antigo regime e os novos revolucionários surgidos depois de 25 de Abril e que assumiram a social-democracia à Esquerda e que agora se confundem com a direita liberal, embora complexada com a ideologia marxista, sempre que tal vem ao caso. João Coito era um tolerante, um pacificador.

Além disso, sobrevivia com uma choruda reforma de 500 euros por mês, depois de abdicar do estipêndio das suas crónicas no jornal , devido às amplas facilidades que este governo tem concedido e que provocam a crise, também em certa imprensa, porque a televisão precisa mais. E muito mais, para pagar aos locutores da continuidade na evolução politicamente correcta, os milhares de euros que amplamente merecem, como se tem mostrado.

Talvez por isso, fosse “um amigo” para Veiga Simão que escreve "Que Deus proteja João Coito" e dele fala com a ternura das antigas amizades, para comentar que ambos conversavam sobre os "males da Pátria". Quem lê este Veiga Simão, não acredita no que lê, ao pensar que esteve onde esteve! Mas ainda bem. Para Joaquim Veríssimo Serrão e ainda Fialho de Oliveira, também partiu um amigo; um “jornalista maiúsculo”, para Fernando Dacosta; um “mestre”, para Carlos Pinto Coelho;um Homem bom”, para Walter Ventura., todos com depoimento escrito no O Diabo desta semana.


sábado, 13 de outubro de 2007

Portugal é um país cristão II


A gesta dos Descobrimentos, a maior de toda a nossa História, de mais de 800 anos, foi celebrada na nossa maior obra literária: os Lusíadas, de Luís de Camões. A obra começa de um modo inequívoco, a cantar as “memórias gloriosas, daqueles que por obras valerosos se vão da lei da morte libertando, como foram as daqueles Reis, que foram dilatando a Fé”.

O Infante D. Henrique, o grande impulsionador das viagens náuticas dos Descobrimentos, foi nessa época nomeado grão-mestre de uma ordem religiosa, a de Cristo, herdeira dos Templários, cujo símbolo de Fé, passou a acompanhar o espírito das viagens, como antes nas Cruzadas.

A monarquia portuguesa, viveu desde sempre e durante os séculos que Portugal tem de existência, como nação independente, sob o símbolo do cristianismo e da religião católica. Essa religião, em Portugal, não é um acrescento espúrio à natureza e tradição do povo, antes significa porventura, a mais genuína característica deste povo, no que respeita ao seu imaginário colectivo e referencial, mesmo cultural.

São séculos de tradição que nem o liberalismo das luzes e o positivismo do séc. XIX vieram ofuscar. A Constituição liberal de 1822, que separou os poderes legislativo, executivo e judicial, mesmo em monarquia, consagrou também a religião católica apostólica romana, como a religião da nação portuguesa, acompanhada de tolerância para as outras religiões, dos estrangeiros.

De onde veio então, o primeiro ataque em forma de alteração por decreto, à natureza tradicional do povo português?

Do republicanismo do final do séc. XIX e particularmente de figuras como Afonso Costa, nascido em 1871 e seguidor de uma outra religião, a do laicismo, no seio da Maçonaria, em cuja loja assumia o nome de Platão.

É de Afonso Costa, a iniciativa legislativa, de 1911, como ministro da Justiça de governo republicano, de separar as Igrejas do Estado e ainda iniciativas concretas de perseguição desvairada aos religiosos dos conventos e seculares, com prisões, expulsões e confisco de bens dos religiosos. Em 1917, com o advento de Sidónio Pais, Costa, acabou preso e exilou-se em Paris, onde morreu em 1937.

Segundo os laicistas republicanos, Afonso Costa, foi um pequeno génio que habitou neste rincão, onde trouxe a luz a este lado do obscurantismo religioso, atávico e secular.

Nunca teria proferido a frase fatal que lhe atribuem de profetizar a eliminação da religião, nos dois tempos de duas gerações.

Inegável, porém é a sua hostilidade activa e actuante contra os religiosos e jesuítas em particular.

Afonso Costa, foi um político radical, com ideias revolucionárias e que lesaram com gravidade, o equilíbrio até então existente, entre a Igreja e o Estado.

Aproveitando a decadência da monarquia como regime, capitalizou, como poucos o descontentamento popular, que conduziu finalmente à implantação da República, em 1910. Afonso Costa é um dos heróis da República.

Em 1895, em Coimbra, onde se licenciou, também se doutorou com uma tese sobre a Questão social e a Igreja, debatendo a encíclica Rerum Novarum em modos hostis e reveladores de uma atitude de vida e política.

Não obstante a sua patente hostilização à Igreja de Cristo, sempre pronunciou publicamente um discurso de contemporização, assegurando a liberdade de culto, enquanto promovia objectivamente a perseguição ao clero e a uma parte dele, como os frades e jesuítas. A ordem de Jesus, mereceu-lhe uma particular ferocidade no ataque público e associou a mesma a práticas mercantis degradantes, pretextando e justificando desse modo, a acção de perseguição, concreta aos seus membros destacados.

A prova desta perseguição religiosa, com paralelo em países do leste, durante as revoluções populares, é que uma boa parte deste clero, fugiu para Espanha ou foi deslocada.

Com a Lei de Separação das Igrejas e do Estado, aprovada contra a vontade dessas Igrejas e sem contemporizações de natureza humana, pelo destino dos seus membros clericais, confessadamente, pretendia moralizar a vida pública, vituperando os maus servidores da Igreja, julgados por ele próprio como tais, e o que chamava de catolicismo decadente, que se opunha à ciência, à civilização e ao progresso, os novos mitos e bezerros a adorar, no altar do laicismo, a nova religião substitutiva.

A Igreja, assumia, neste contexto, o papel reservado aos reaccionários – com uso expresso do termo- de todas as latitudes, nas revoluções, como na Rússia cazrista em seguida à revolução de Outubro de 1917.

Uma das provas que a primeira República, atentou contra este sentimento tradicional, procurando implantar um laicismo gradual e substitutivo da religião, até aí referencial público do Estado enquanto poder, na sua ligação com o povo, é dada pelos mesmos laicistas de sempre: no último referendo sobre o aborto, não se coibiram de proclamar que a vitória do sim no referendo, constituía a maior derrota da Igreja, desde a Primeira República.

É neste contexto que deve ser encarada a atitude pública do Governo, relativamente à Igreja e a conclusão só pode ser uma: O governo republicano de Afonso Costa, se tal fosse permitido socialmente, acabaria com a religião, por decreto, em nome da ciência, do positivismo e do progresso. Tal como Marx, Afonso Costa, considerava a religião, um ópio, uma diversão da razão, uma doença do entendimento correcto. É por isso legítimo, pensar e dizer que Afonso Costa esperava mesmo um desaparecimento do sentimento religioso, com o advento do progresso técnico e da ciência, o que poderia ocorrer um poucos anos. Para esse resultado, tudo fez, dentro do que lhe era permitido e também fora, motivo por que foi mesmo para fora do país, como acontece aos percursores, cuja inteligência fulgurante não lhes permite avaliar as consequências dos actos que praticam.

Após Afonso Costa, o sidonismo e o advento da Revolução de 28 de Maio de 1926, inverteu-se a tendência de perseguição do Estado à Igreja, assumindo esta normalização a forma de Concordata, com o Estado Novo.

Mesmo em 1917, altura das aparições de Fátima, as relações do Estado republicano, laico, com a Igreja Católica, eram mais serenas do que antes, o que não impediu, ainda assim, atitudes de perseguição religiosa aos crentes e a intervenção de autoridades do Estado, com vista à desmontagem do culto nascente e que acabou por se implantar definitivamente, durante o Estado Novo, que de modo algum interferiu hostilmente contra a Igreja e assegurou através de relações de amizade pessoais entre governantes da Igreja e do Estado, um equilíbrio que perdurou durante mais de 40 anos.

Em mais de meio século e na sequências destes acontecimentos históricos, foram educados milhões de portugueses, em escolas públicas, sob o sinal da cruz; foram admitidos milhões de doentes em hospitais, confortados pela Igreja; foram acompanhados militares em missões, por padres; foram estabelecidas regras de financiamente público de actividades indirectamente religiosas etc etc. e foram reestabelecidos vínculos de protocolo existentes entre a Igreja e o Estado, ancestrais e tradicionalmente pacíficos.

A Concordata de 1940, estabeleceu princípios de equilíbrio nas relações entre a Igreja de Roma e o Estado Português. Em 2004, foi modificada, com incidências particulares em matéria cooperação e a definição afirmativa da neutralidade do Estado perante a religião que difere substancialmente da laicidade de uma sociedade, como alguns laicistas teimam em afirmar, assimilando a laicidade do Estado, ao laicismo geral e global que pretendem em todos os sectores da vida social.

Esta tensão, visível nos últimos anos, e comprovada no caso do referendo ao aborto, toma relevo acrescido, sempre que determinadas figuras de partidos que se reivindicam de Esquerda, tomam o poder político, mesmo de influência.

As atitudes repetidas de ataques revanchistas, tomam então um aspecto de ofensiva laicista, que se reflecte em todas as matérias susceptíveis de integrarem os conceitos nebulosos que defendem, em prol da separação da Igreja e do Estado.

Retomam-se então os argumentos jacobinos do tempo de Afonso Costa, sempre com as melhores das intenções democráticas e republicanas e sempre estribadas em interpretações peregrinas das leis vigentes, retorcida quanto baste para lhes modelar argumentos.

Mais uma vez se retomam as ideias de progresso e razão, contra o obscurantismo religioso e o irracionalismo das crenças em deuses e mitos. Mais uma vez, defendem-se ideias peregrinas vindas do século XIX, para atacar as ideias religiosas que sempre existiram e perduram há séculos e séculos e atingem toda a Humanidade, em todas as épocas.

E tudo isso em nome de quê e de quem? Do laicismo progressivo, conformado no ateísmo e no racionalismo puro e que já provou noutros lados, ter consequências contrárias àquelas que supostamente evitaria: a intolerância e o sectarismo.

Portugal é um país cristão


Portugal é uma terra de cristãos. A afirmação é controversa? Vejamos:

Desde o séc. IV, a Igreja Cristã, com o seu papa sedeado em Roma, conduz a religiosidade dos crentes, através de concílios definidores de doutrina.

Numa época de grande religiosidade, como foi toda a Idade Média, o poder da Igreja era imenso, porque todas as comunidades das aldeias vilas e cidades, em feudos e regiões, se agregavam sob a força do divino e da crença num Deus único, redentor e pai, omnipotente, criador do Céu e da Terra e de todas as coisas visíveis e invisíveis. E a crença estendia-se a Jesus Cristo, filho único de Deus, gerado e não criado, consubstancial ao Pai e nascido da Virgem Maria.

Esta essência da fé cristã, com as particularidades subtis, definidas nos concílios da Igreja, era indiscutível na Idade Média e quem a colocasse em dúvida, por actos ou palavras, era considerado hereje, julgado sumariamente e condenado, muitas vezes à morte, como aconteceu nos anos da Inquisição.

No ano 800, no dia de Natal, data de nascimento de Cristo, Carlos Magno, o grande rei dos francos que se tornou o conquistador de todo o território que hoje é a Europa, foi coroado imperador, na basílica de S. Pedro, em Roma, pelo Papa. O acto, simbólico, determinou uma objectiva submissão do poder temporal ao religioso, cristão e papal.
Em Portugal, séculos depois, já na época das cruzadas de cristãos, para a defesa dos territórios do Médio Oriente, onde nasceu Cristo e a cristandade, nasceu também Portugal, como reino independente. Em 1143, Portugal definiu as suas fronteiras e demarcou-se de outros povos, tendo sido reconhecido como tal pelo Papa.

Durante todo o seu percurso histórico, Portugal agigantou-se aos olhos de outros povos, através de feitos singulares. Um deles, foi a luta pela independência, em relação aos vizinhos de Castela, também cristãos e católicos, mas com apetites de expansão territorial. Numa tarde quente de Agosto de 1385 acabaram, porém as veleidades do povo vizinho e irmão. Com a batalha de Aljubarrota, a vitória da táctica sobre a força, contou com a ajuda dos crentes em Deus e na Virgem Maria. Nuno Álvares Pereira, o condestável do rei, foi o general e herói da nossa independência. Depois disso, tornou-se monge, e foi beatificado pela Igreja em 1918. A sua Fé em Deus e na Virgem, acompanhado pelo rei da época, D. João I, levaram à edificação de uma obra mestra da arquitectura gótica e do simbolismo português: o mosteiro da Batalha, erigido em honra de Santa Maria, da Vitória, num agradecimento explícito pela ajuda divina.

A construção, religiosa e destinada a religiosos, é uma das maravilhas de Portugal, um dos seus símbolos identitários e uma das realizações portuguesas mais enraizadas na tradição cristã.

Em seguida a este empreendimento de vulto, em marcha guerreira pela independência desta terra onde vive este povo, apareceu a época de ouro das Descobertas e do desenvolvimento português.

Quando a reconquista do território terminou, no início do séc. XIII, os reis de Portugal , avançaram para o Norte de África, para, além do mais, cristianizarem os mouros que nos tinham invadido antes. A tarefa, não foi bem sucedida, mas permitiu o desenvolvimento de ideias e escolas de navegação e ciência, avançadas para a época, e que nos permitiram chegar à Índia, por mar, antes de outros o terem feito. Foi a ínclita geração de D. João I e a Educação concreta e os saberes concretos, das universidades da época e da escola náutica de Sagres, sem conceitos estrambólicos de pedagogia, que nos permitiu ficar a saber mais e melhor que outros e daí tirar vantagens práticas.

Como é que se fizeram as viagens por mar, nos cinco continentes? Com caravelas inventados por nós, as naves lunares desse tempo. As caravelas, traziam nas velas desfraldadas ao vento, a cruz de Cristo, bem visível para quem as visse pela primeira vez .

Foi esse símbolo, acompanhado de pregadores e missionários, que permitiu expandir a Fé cristã em regiões remotas, onde se edificaram feitorias, colónias e influências, nos cinco continentes, para onde partiram outros, onde ficaram durante séculos, em convivência pacífica.


quinta-feira, 11 de outubro de 2007

A importância de se chamar Ernesto



























Um toc toc, na imagem, permite a leitura do artigo, da L´Express de 27.9.2007.


O analista do Le Monde, em questões geoestratégicas, Gérard Chaliand, escreve sobre a morte de Che Guevara, 40 anos atrás e os seus envolvimentos contextuais.

El Che, Ernesto de nome próprio, queria exportar revoluções, criando vários Vietnames. Na Bolívia, onde soçobrou, aplicou a teoria do foco, ou seja, a estratégia militar de armar uns tantos milicianos da revolução e da acção prática de guerrilha circundante, sem grandes preocupações ideológicas ou de formação política, procurando atingir o poder central, inimigo principal. Tal como em Cuba, Ernesto, tentou as montanhas, a propaganda pela acção e as emboscadas e foi apanhado numa.

Escrever sobre as tácticas e estratégias políticas do Comandante, parece algo despiciendo nos tempos que correm, em que o mito deo Che, já tem longo curso.

Quem escreve sobre estas efemérides, deveria talvez fazê-lo com um mínimo de cuidado histórico, de aproximação ao real vivido na época e contextualizado no lugar.

Enfatizar um lado romântico e heróico do Che, esquecendo toda a parafernália ideológica que o suportava e, principalmente, olvidando os métodos de guerrilha e de operação militar como máquina de matar opositores, é contribuir para o mito que matou em nome de ideias erradas, tácticas erradas e justificações políticas erradas.

Enfim, compreender o Che, aceitando a essência da sua acção, é contemporizar com o terror. Porque de terror se trata e é sobre isso que ultimamente se tem escrito, ao ficarem apurados actos concretos, decisões concretas e opções políticas e tácticas concretas.

Uma das passagens exemplares do texto publicado recentemente na revista L´Express e já citado, dá-nos toda a dimensão do problema .

Um dos entrevistados pela revista é Sergio Garcia, irmão do preso político, Rafael Garcia, de 26 anos, polícia em Havana, nos tempos de Batista.
Foi preso e acusado, de ter participado no assassinato de um membro do partido de Fidel. E por isso foi condenado à morte. Pelos vistos, o julgamento foi sumário demais e as prova de menos.
Perante a iminência da execução, a família, remexe tudo para encontrar provas da inocência do desgraçado. E encontra-as, indo esperançosa, mostrá-las ao chefe Ernesto, El CHE, fazendo-lhe ver o erro judiciário que se evidencia e as consequências para a jovem mulher que ficaria viúva. Nada feito. El comandante, responde assim ao irmão que agora conta a história: "o seu irmão talvez esteja inocente, mas andava com o uniforme errado. Por isso tem de morrer."

Era este o humanismo do herói popular, agora celebrado. E o morto, deixou uma carta que dizia assim:

" Meu amor adorado, esta é a última carta da minha vida. Os nossos quatro meses de casamento foram os mais belos do mundo. Estou orgulhoso da minha família. Amo-te até á loucura. A única coisa que me penaliza é que morro inocente."

A diferença entre esta declaração de amor e a do El Comandante, é muito simples de entender: EL Che,ao contrário do polícia, sabia muito bem que não estava inocente, porque tinha as mãos tintas de sangue. Revolucionário e que se limpa por si mesmo.

O que estes singelos episódios mostram- e há muitos mais, -é um perfil de guerrilheiro, de puro terrorista, em que as regras de humanidade básica, já nem subsistem, porque não se está nessa dimensão. Romantizar este tipo de personalidade, atribuindo-lhe qualidades políticas e de Homem condutor de homens, é perigoso, porque santifica o diabo, diabolizando os inimigos em nome de cuja derrota tudo fica a valer. Vale tudo, para se atingir o fim da Revolução e tudo se justifica e desculpabiliza para se andar por essa via. “A revolução consome os seus filhos”, é um eufemismo para os horrores mais trágicos. Os exemplos, aos milhares, daquilo que aconteceu em todos os processos revolucionários, nunca serve de emenda para quem aceita estes termos de justificação.

É esta mesma lógica que contemporiza e aceita o projecto global de umas FP 25 de Abril; o projecto da Lotta Continua, em Itália ou as acções do Baader Meinhoff, na Alemanha, e aceita como herói um outro boliviano: Carlos, o Chacal. Este aliás, como os outros, tinha como herói, precisamente o Ernesto. O Che.

Tal como este, Carlos portou-se sempre como um assassino. Frio, calculista e sem escrúpulos. Quem o disse, não foi a propaganda judaica. Foram os inúmeros factos, a começar pelo assassínio de dois polícias, para fugir à prisão, em França.

Nestes dias, foi dado conhecimento que um padre argentino, Cristian Von Wernich, capelão das prisões políticas de Videla, foi condenado em prisão perpétua, por factos praticados nas prisões, entre 1976 e 1983, anos de chumbo argentinos.

Videla, à semelhança de Pinochet, não tem, aliás, qualquer espécie de perdão político ou contextualização ideológica, ao contrário daqueles. Porém, a lógica de guerra civil é a mesma.

No que ao capelão se refere, os factos são imensamente mais suaves do que os factos conhecidos, atribuídos ao Ernesto, na altura em que este comandava a principal prisão de presos políticos em Cuba, La Cabaña. Ainda assim, foi julgado como o assassino que terá sido, por deixar morrer culpados de terem opinião contrária aos ditadores do momento.

El Che, pelo contrário, tem direito a posters, tee-shirts e encómios das forças políticas de esquerda.

E isso, é um problema.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

El Che

Faz hoje 40 anos que El Comandante, Che Guevara, morreu, executado por um comando de rangers bolivianos treinados pelos americanos para perseguir e executar o guerrilheiro, como aconteceu. Em 1967, nos EUA era presidente Lyndon B. Johnson.

O relato da sua morte, em directo e pelo seu executor, fica por aqui, em facsimile, tirado da revista L´Express, de 27.9.2007.

A primeira vez que ouvi falar da morte do Che, foi na revista Selecções do Reader´s Digest, no final dos anos sessenta. O relato impressionou-me logo pela perspectiva do vencedor, os americanos, directamente envolvidos e as fotos não enganavam, porque houve o cuidado de fotografar o morto, para o mostrar ao mundo e tentar acabar com o mito. Engano. Começou aí mesmo.

Em 5 de Março de 1960, um repórter fotográfico do jornal cubano Revolución, tirava a chapa que serviria de poster para ser tirado aos milhões, como estandarte do mito Che Guevara, El Comandante.

Esse poster, correu mundo e em Portugal, depois de 1974, foi afixado em muitas paredes. Também tive um, afixado na parede. Porquê?

Porque Che Guevara, esquerdista e revolucionário, incarnava ainda um espírito de aventura, na época. Uma libertação individual e uma imagem apelativa ao empenho social e político, generoso e altruista. Romântico até, porque apresentado como um cavaleiro andante da libertação de gentes pobres e humildes. Um Robin dos Bosques moderno. Um cavalheiro da pureza revolucionária.

Por outro lado, o comunismo em 1975, em Portugal, era uma força dominante e o espírito de PREC contagiava muita gente que ainda assim, nada tinha a ver com projectos revolucionários de deposição do sistema político-social, pela democracia popular.

Para além da propaganda e da linguagem completamente dominada pela esquerda, ninguém falava publicamente nos crimes do comunismo. Crimes, só os do “fascismo”, propalados, aliás, sem corpo de delito. Os antifascistas não cometiam crimes e a denúncia da barbárie estalinista surge bem depois e com força apenas no final dos anos oitenta.

As revelações sobre os crimes do comunismo surgem nessa altura e ainda agora falam e escrevem. Entretanto, o mito do Che, arreigara-se já, bem firme, às paredes e muros, no poster estilizado de Korda.

Ainda há meia dúzia de anos, num filme bem feito tirado do livro Viagens de motocicleta, a figura do Che, é apresentada de modo edulcorado e mistificado. É impossível não simpatizar com a figura do El Comandante avant la lettre e por extensão, do Che.

E no entanto, Che Guevara falhou em toda a linha política. O comunismo porque lutou, soçobrou e em nenhum dos lugares por onde andou e lutou, o sistema marxista conseguiu implantar um exemplo de sociedade apresentável ao mundo.

E ainda assim, a imagem perdura. Será um retrato de realismo autêntico ou apenas fantástico?

Pelo que se pode ler ultimamente, a opção é pela perplexidade. Um livro recente, La face cachée du Che, de Jacobo Machover, é uma das publicações de denúncia.

A revista L´Express, de 27.9.2007, foi entrevistar os companheiro do Che, actualmente exilados em Miami e outros lugares. “As suas narrativas provocam frio nas costas”. Porquê?

Segundo um deles, Huber Matos, um dos comandantes da revolução, preso em 1959, por ter criticado os excessos revolucionários, nem hesita: "Acho,definitivamente, que lhe agradava matar gente." As pequenas histórias que alguns deles contam, são efectivamente o reverso do poster romântico do esquerdismo militante.

Che Guevara, lidou com a morte, na prisão de Cabana, para onde foi como comandante do presídio, nomeado por Fidel Castro, em 1959. Às centenas, os presos são enviados ao paredón e muitas das execuções sumárias de pretensos contra-revolucionários, são da própria autoria do Che, num exercício de crueldade testemunhado pelos antigos companheiros. Contam-se em número superior a 200 essas execuções, o que faz do Che, um dos maiores matadores da Revolução, um pouco atrás do actual líder de Cuba, Raul Castro, responsável por mais do dobro das mortes.

Luciano Medina, impedido do Comandante, também exilado: " Matava como quem bebia um copo de água. Nós, a tropa, ficávamos descoroçoados".

Na reportagem ainda há o relato de uma entrevista com Felix Rodrigues, o antigo agente da CIA que prendeu o Che e o mandou directamente fuzilar, sob ordens superiores e de quem ouviu as últimas palavras: "Diz à minha mulher que volte a casar e tente ser feliz".

Aleida, parece que seguiu a recomendação e publica este ano as suas memórias.














segunda-feira, 8 de outubro de 2007

A "questão religiosa".


Nenhum Estado se pode fundamentar, apenas, numa concentração de poder e num exercício coercivo do mesmo, por muito que isso seja irrenunciável; deve também levar a cabo, acções positivas que assegurem a legitimidade, sendo necessárias ligações, graças às quais, as pessoas prestem uma obediência prevalentemente voluntária. E seria de igual modo uma ilusão pensar que um ordenamento estatal pudesse viver da concessão da liberdade individual auto-referencial, sem um vínculo unificador comunicando um sentimento do “nós”, prè-existente a esta liberdade- Ernst-Wolfgang Böckenförd, in La Repubblica de 6.10.2007.

Tem isto a ver com a verdadeira “questão religiosa” que os adeptos do laicismo, entre nós, pretendem atiçar, ainda que o neguem como lhes convém. Hoje mesmo Rui Tavares, um dos apoiantes ideológicos do movimento, escreve no Público mais uma acha para a fogueira acesa, procurando desconversar o sentido da ofensiva laicista.
A história das “capelanias hospitalares”, não é uma questão menor, embora o pareça. É apenas o mais recente episódio do ataque aos sentimentos religiosos de uma população. Sim, população. Portugal, não é um país laico, embora o Estado o seja e assim deva ser.
Mas existe uma diferença entre um Estado secularizado e um Estado que ataca a liberdade confessional, impondo restrições à liberdade de expressão religiosa existente e com séculos de tradição cristã e católica em particular. Um Estado que afronta os sentimentos religiosos de uma população , exerce uma violência sobre si mesmo, porque renega as raízes culturais e religiosas de todo um povo. Salazar compreendeu isto mesmo e Caetano seguiu as passadas. Não consta que qualquer um deles fosse crente fervoroso e beato.
Este poder socialista, laico e republicano, prescinde alegremente de tais considerações históricas e análises sociológicas, por mor de um laicismo directamente herdado do ateísmo. A questão religiosa, actualmente viçosa no Portugal de hoje, assenta nisto: na contradição entre o sentimento laico de uns poucos militantes do ateísmo, com assento firme na intelligentsia e no poder político e o sentimento religioso, profundo e visível em peregrinações de centenas de milhar de pessoas, extensível a todo um povo, por força dos símbolos visíveis em cada esquina, em cada freguesia e em cada lugar recôndito das consciências da maioria. O Estado português não pode prescindir de conceder atenção particular, nesse aspecto religioso, a um povo que ainda se lembra dos ritos e costumes tradicionais, ligados às práticas religiosas centenárias e que criaram raízes seculares. A identidade do povo português não é laica nem ateísta, por muito que o possam desejar os corifeus do ateísmo. E por isso mesmo, uma minoria de jacobinos, não tem o direito de impor ideias peregrinas a todo um povo, manipulando os conceitos legais que não traduzem sequer o que eles desejam como norma.

O equilíbrio entre o poder secular e o sentimento religioso do povo, não prescinde de análises pontuais e delicadas, nas medidas legislativas e de poder político a tomar por quem governa de momento. Um Estado não pode prescindir totalmente das próprias raízes e elevar-se a um puro Estado racional que o prive do perfil cultural enraizado e que lhe é próprio, como outros já disseram.
Daí, segue que nem sequer é legítimo que se arrase todo este conceito, quando se nivelam na lei e no direito, todas as manifestações exteriores da religiosidade. Nenhum país faz isso e nenhum povo aceita isso pacificamente. Pode vir a aceitar mais ou menos manifestações de tolerância, mais ou menos concessões de liberdade ao outro, mas ensina a História que os conflitos religiosos são dos mais sangrentos e temos exemplos recentes disso mesmo. Logo, todo o cuidado é pouco nestas matérias e toda a atitude de bota repressora e ideologicamente cardada, nestas matérias, lembra inapelavelmente os tempos dos ditadores sanguinários que os laicistas, curiosamente, esquecem. Estaline, Mao e outros tentaram eliminar todo o ópio do povo, no seu tempo. Fizeram-no do modo brutal que é conhecido, mas poucas vezes denunciado e conseguiram apenas reprimir e eliminar as aparências, porque a essência manteve-se. “Não há machado que corte a raiz ao pensamento”, como se sabe.
Por cá, o modo brutal, foi mais brando e ideológico. Afonso Costa, encarregou-se no início do século de proclamar o fim da religião do Estado e afiançou o fim da religião total, para dali a duas gerações. Tratou mal a "padralhada", nacionalizou, expropriando, conventos e edifícios da Igreja; expulsou e reprimiu comunidades religiosas.
O ópio do povo, deixaria de ser a religião e passaria a ser a República laica, com o seu cortejo de jacobinos encasacados no poder de mandar.
Seria bom que os jacobinos actuais, com destaque para Vital Moreira, não esquecessem que nem assim foi possível erradicar o que mais temem: a religiosidade intrínseca de quem acredita em Deus ou pelo menos numa Entidade que nos criou e ao Universo onde estamos.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

O populismo já tem paternidade

O Populismo, filho órfão da democracia, andava por aí, sem pai conhecido, até que José Pacheco Pereira, averiguou oficiosamente a paternidade e deu-lhe o nome: a forma de fazer política de Santana Lopes.
Na revista Sábado desta semana, regista a patente da sua pesquisa e afirma que antes dele, só os académicos e curiosos de bizarrias, davam a devida importância à palavra para definir um estilo de governo, como o de Santana.

Hoje em dia, a palavra é lugar-comum, segundo JPP que assume a paternidade da divulgação extensiva e associou a uma corruptela democrática.

Ora, a palavra Populismo, nem é nova, nem foi inventada por Pacheco Pereira. E estou em crer que outros, antes dele, a usaram com significado ainda mais apropriado. Mas temos a patente registada no escrito da Sábado.
Deveríamos por isso, ter as características do rebento, da criatura, mas não temos. O populismo, para JPP, sinteticamente, é algo não definido e o artigo foge à definição, apenas para criticar a corruptela da sua própria descoberta. Notável.

Eppure...no livro de 1976, Il Dizionario di Politica, de Norberto Bobbio, já o termo lá estava, com definição bem precisa.



Para além disso, o verdadeiro populismo, na acepção de Bobbio, não é o mesmo mencionado sumariamente por Pacheco Pereira.
Um dos que melhor definiu o populismo, foi Vasco Pulido Valente, num artigo que publicou na revista Vida, suplemento do Independente, de Julho de 1989.

Mesmo sem lhe designar o nome, o artigo, notável, é sobre Cavaco Silva e o seu modo de governar.
Pacheco Pereira
, nessa altura, nem lhe ocorreria a definição: estava no Parlamento, sentado na bancada da maioria social-democrata.
Pulido Valente não lhe chama populismo, mas os termos, os tiques, os modos e o estilo, estão lá todos. Com excepção de um, apenas: o flash mediático. Esse, aliás, só veio depois, com a abertura das tv´s aos privados.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

O republicanismo dialético

Não pode passar sem referência este pequeno texto de um dos maiores portugueses de sempre: Fernando Pessoa.
O texto é de iconoclastia contra o politicamente correcto que configura a existência de uma República, como o estádio último do desenvolvimento humano. O verdadeiro Fim da História.

Para certos indivíduos que execram a monarquia como execram as crenças religiosas; ou alimentam sonhos serôdios de materialismo dialético requentado na república laica, este texto é uma pequena graça.
De graça e tirado da caverna do Dragão:

«A República Velha* nada alterou das tradições desonrosas da Monarquia. Mudou apenas a maneira de cometer os erros; os erros continuaram sendo os mesmos. Em vez de um regimen católico, um regimen anticatólico, isto é, um regimen que logo arregimentava como inimigos os católicos. Em vez de uma República portuguesa, de um regimen nacional, uma república francesa em Portugal. E assim como a Monarquia Constitucional havia sido um sistema inglês (ou anglo-francês) sobreposto à realidade da Pátria Portuguesa, a República Velha foi um sistema francês sobreposto à mesma realidade pátria. No que respeita aos erros de administração - a incompetência, a imoralidade, o caciquismo - ficámos na mesma, mudando apenas os homens que faziam asneiras, que praticavam roubos e que escamoteavam "eleições". De sorte que a República Velha era a Monarquia sem Rei. Por isso é justo dizer que o 8 de Dezembro foi a queda da Segunda Monarquis.
Como podiam deixar de ser assim? Os homens do Partido Republicano tinham a mesma hereditariedade nacional, tinham vivido no mesmo meio que os da Monarquia; porque milagre teriam uma mentalidade diferente? Se Portugal tivesse regiões diferentes, nitidamente diferentes, se a Revolução de 5 de Outubro tivesse trazido para o poder homens de uma região diferente daquela de onde soessem provir os homens da Monarquia, então haveria homens diferentes no poder. Mas eram os mesmos políticos profissionais, os mesmos advogados da mesma Coimbra, os mesmos copistas da França - como podiam ter mentalidade diferente?»
- Fernando Pessoa, "Da República"

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

A velha tradição

Hoje celebra-se o dia internacional da Música.
A efeméride data de 1975, instituída pela UNESCO, e o violinista Menuhin em particular, e celebra a importância da música em geral. Sobrepõe-se a outra efeméride, esta a celebrar em 22 de Novembro, com séculos e séculos de tradição: o dia da padroeira dos músicos, e da música por antonomásia, que a Igreja católica venera como Santa Cecília.

Cecília, foi uma romana do tempo do paganismo. Convertida ao cristianismo nascente na Roma antiga, foi martirizada por não renegar essa Fé.

O seu corpo foi sepultado numa cripta, de uma catacumba, conhecida actualmente como de S. Calisto, um dos papas sepultados nesse lugar, precisamente na cripta dos Papas . As catacumbas eram o lugar autorizado para os cristãos enterrarem os seus mortos e foi aproveitado pelos mesmos, para se reunirem em segredo, por causa das perseguições das autoridades romanas, até ao século de Constantino. Até ao ano 312, data da conversão ao cristianismo, daquele que até então adorava o deus Sol, foram dezenas e dezenas de milhar, calculando-se em 200 a 300 mil corpos, aqueles cristãos clandestinos que aí foram sepultados.

As catacumbas de S. Calisto, encontram-se no seguimento de uma meia dúzia de quilómetros, pela Via Appia antiga, a partir do Colosseo, no centro de Roma. A visita ao lugar, guiada por conhecedores ( estive lá com um padre espanhol, de grande sentido de humor e conhecimento específico), é uma experiência inesquecível, porque aí se encontra a essência da Fé, ao longo dos séculos, e perceptível no lugar com quase dois mil anos. É algo inefável e que torna a viagem uma caminhada mística por entre galerias e túneis, dezenas de metros debaixo do solo, escavadas com as mãos e os poucos instrumentos que se podiam esconder de olhares curiosos e hostis. Ao longo dos túneis, em que apenas consegue passar uma pessoa pela outra, podem ver-se os símbolos primitivos do cristianismo nascente, trazidos do Oriente médio: o peixe e a cruz sobrepostos; o cordeiro e pão e a imagem, bizantina avant la lettre, do Cristo Pantocrator.

O percurso nas galerias é uma experiência única no mundo. Cristão ou pagão.

Numa das criptas dessas galerias, encontra-se o lugar onde esteve sepultado o corpo de Cecília, romana de boas famílias e que se tornou santa da Igreja cristã, pelo martírio. Aí ficou desde a data da sua morte, entre o final do século II e início do III, até ao ano 821, quando foi trasladada para outro lugar de Roma, em Trastevere. No lugar primitivo, repousa agora uma estátua, representando a posição em que o corpo foi encontrado e a inscrição respectiva. Tudo respira uma Fé, incompreensível para um ateu, mas de uma força incomparável em quem acredita numa Essência superior a nós mesmos.
A sua particular atenção à música, levou os artistas primitivos a representá-la com a lira simbólica.

Nos tempos que correm, esta tradição secular, precisa de ser avivada para que o laicismo rompante, se remire mais uma vez, no espelho do nada que lhe devolve o vazio.


Postal retocado na escrita sintáctica e acrescentado, em 4.10.2007.

O jacobinismo assenta-lhes tão bem

É verdade que há uma herança greco-latina como factor de unidade, mas não se pode dar o salto do século de Augusto - a Roma que a UE gosta - para as Luzes - a filosofia que a UE gosta -, porque foi exactamente neste intervalo que a Europa se fez e essa Europa foi feita por uma religião que veio do Oriente, o cristianismo. Paulo trouxe o cristianismo do mundo dos judeus para o dos gentios, o que significou primeiro para os gregos e a filosofia grega, e depois para os romanos, para o direito romano. Desde que Constantino fez do cristianismo a religião do império, da Irlanda à Moscóvia, foi a religião que fez a Europa e essa religião defrontou desde cedo uma religião combatente, o islão. - JPP, Abrupto


O Governo quer mudar a assistência hospitalar nos hospitais do Estado. O sistema actual parece ter inconvenientes para a paz pública. Num certo sentido, com esta medida, observa-se uma violação do princípio de separação da sociedade civil e das religiões: o Estado escusa-se a exercer qualquer poder religioso e as Igrejas qualquer poder político- ou seja, o Estado, ao invés de se cingir à esfera temporal, parece querer “espiritualizar-se”, impondo a anti-religiosidade à sociedade. Isto acontece porque usa o seu poder político para restringir, de uma forma incompreensível, o exercício da missão religiosa, considerando-a supersticiosamente como uma ameaça.
O Estado é laico e não tem sentimento religioso, mas condicionar por preconceito a assistência espiritual de quem, por força da doença, está retido numa cama hospitalar pública é, em si mesmo, um sinal de intolerância
.” Pedro Afonso, Público de 1.10.07

Daquele excerto de um artigo de Pacheco Pereira, para esta crónica de hoje, no Público, assinada por Pedro Afonso, médico psiquiatra conhecedor do meio hospitalar, há um paralelo constante que se reflecte no modo de pensar e agir na sociedade actual.
Os capelistas anti-clericais, seja o dos Grilos, seja a dos enfados jornalísticos, sejam mesmo os que não compreendem a natureza das coisas, afirmando-se sabichões das comichões, são os saltões do costume: tudo o que lembre o período de séculos de influência da Igreja católica apostólica romana, é visto como uma ameaça ao laicismo que convocam e provocam.
Os herdeiros da ideologia de Afonso Costa, estão vivos e actuantes.

Afinal, os jacobinos, são os antigos esquerdistas, antes de o termo ter sido cunhado. Vindos da Revolução francesa terminaram o seu breve reinado de terror, num Termidor que normalizou e conformou a sociedade e conduziu a Napoleão.
Os actuais jacobinos, são os novos revolucionários do costume e contestatários arreigados da tradição. No século propício, opunham-se à monarquia, reivindicando a república, por meios violentos. Hoje, sem grandes horizontes, depois da derrota da ideologia que herdaram, definham a reivindicar bandeiras avulsa.
O anti-clericalismo, é uma delas. Atacar igrejas, padres e símbolos de crença religiosa, é a nova bandeira do jacobinismo, à falta de outras e depois de falhar a ideia global de criação do Homem Novo. A ideia, por isso mesmo, é velha.
Michelet, dizia que alguns indivíduos já nascem jacobinos. Está-lhes no sangue, a atitude permanente de se arvorarem em sentinelas da virtude democrática, à sua maneira e que passa pela postura radical da destruição do adversário. Antes, pela perseguição e morte física, agora, depois da amenização de costumes, pela perseguição política, perseguida, no entanto, com o mesmo afã de intolerância radical.
Se procurarmos com atenção, nos mais activos jacobinos da época presente, encontraremos os mais activos perseguidores de inimigos de classe, do antigamente. A “burguesia”, conceito espúrio e ensombrado por séculos de equívocos, concentrava em si, o ódio de classe. Acabada a burguesia, por falência ideológica, subsiste o poder espiritual como inimigo inventado.
Os jacobinos de hoje, são os activistas de mão no ar e murro na mesa, de ontem. Sempre contra um putativo poder que lhes faz frente ao totalitarismo e agora com um alibi ideológico, depois de terem perdido o paradigma.
Hoje, mesmo com assento seguro no poder político, não esquecem o inimigo imaginário de sempre e que os motivou para a luta radical.
Não acreditam? Leiam aqui.

Assembleia Constituinte, 16 de Julho de 1975...

«Vital Moreira (PCP) - Se os projectos do PPD e do CDS fossem aprovados e promulgados seria impossível julgar em tribunal revolucionário os responsáveis pelo 11 de Março, o que está anunciado pelo Conselho de Revolução desde 12 de Março. E o mesmo acontece, estranhamente, com o projecto do PS.
(Apupos. Aplausos)
Cabe aqui referir, entretanto, que essa posição não se limita aos projectos do PPD, do CDS e do PS. Ainda recentemente o grémio dos advogados, em reunião realizada em Coimbra, tomava a mesma posição, ao mesmo tempo que se preocupava com os réditos da profissão e com os vencimentos dos seus empregados, sem deixar de rejeitar uma moção de apoio ao Conselho da Revolução e de aprovar uma moção de apoio à intervenção do deputado António Arnault feita aqui há dias.
Retomemos o fio. Se os projectos do CDS, do PPD (e também, estranhamente, do PS) fossem aprovados e promulgados...
Vozes: - Não apoiado!
(Manifestações nas galerias)
Vital Moreira: -... Eu limito-me a pedir à Mesa que me seja descontado o tempo das interrupções.
Presidente: - O público não pode intervir, senão terei que mandar evacuar as galerias. Será descontado o tempo correspondente às interrupções.
V.M.: - Se os projectos do CDS, do PPD (e também, estranhamente, do PS) fossem aprovados e promulgados, não poderiam haver mais saneamentos, quer no aparelho de Estado, quer em instituições privadas. Se os projectos do PPD, do CDS (e também, estranhamente, do PS) fossem aprovados e promulgados...
Vozes: - Muito bem!
(Vozes discordantes)

V.M.: - ...Nas próximas eleições já teríamos a votar e a candidatar-se os ex-informadores da PIDE, os saneados, os ex-dirigentes da ANP e da UN, os ex-ministros de Salazar e Caetano.
Vozes: - Não apoiado!
Uma voz: - Desonesto!»
- in Cenas Parlamentares - Humor, agitação e ataques na Constituinte, de Vitor Silva Lopes.


Como refere o Dragão, num retrato perfeito do jacobinismo rompante:

Eles bem viram a casaca, mas a alminha de esbirro, essa, nunca muda. O fervor de meirinho, de beleguim às ordens serve de cabide permanente à casaca variável. A quadrilheirice é vital(ícia). Ontem como hoje, o instinto canino persiste. E porfia.
Registe-se ainda que quando o Avô Cantigas, na sua fase heróica, refere, em tom depreciativo, os "ex-informadores da PIDE", significava com isso apenas os ex-informadores que não eram militantes do PCP antes do dia 25 de Abril, nem correram a alistar-se nesse mesmo partido nos dias seguintes. E foram muitos. Julgo que o que o preocupava, à época, era, tão sòmente, uma minoria residual de não-contritos.