“As doutrinas de divisão dos poderes distinguem os mais importantes âmbitos funcionais do Estado e as competências com ele relacionadas, exigindo a criação de órgãos próprios para cada um destes âmbitos funcionais. Cada um destes órgãos deve limitar-se, por princípio, à função que lhe é atribuída”. (…) O que interessa em último termo é impedir a concentração de poder nas mãos de uma e só pessoa” (…) “A tarefa típica da jurisdição é a função de garantia do direito. A jurisdição, diz, em nome da própria realização do direito, o que é justo”. “Nas democracia ocidentais, a divisão de poderes é considerada como um princípio fundamental, mas não é concretizada rigorosamente de acordo com o seu modelo de tipo ideal. Em geral, só é estritamente observada a independência dos juízes face a intromissões do executivo.(…) Em estados parlamentares, o governo e a administração não estão de modo algum, livres da intervenção do poder legislativo(…) o partido político mais forte, forma governo e a maioria no parlamento, dominando ambos os órgãos. Esta apropriação partidária do governo e da maioria parlamentar conduziu a que, facticamente, o controlo parlamentar tenha passado em larga medida para a oposição.” “O poder judicial participa, através da interpretação do texto da lei e da integração de lacunas legais no processo de tornar mais preciso e completo o direito legislado. As interpretações e o desenvolvimento do direito aberto podem, sob a forma de jurisprudência constante, consolidar-se ao ponto de alcançarem uma possibilidade de execução fáctica equivalente a uma interpretação legal ou a uma outra qualquer norma legal.” -Reinhold Zippelius, Teoria Geral do Estado, 1997, 3ª edição da Gulbenkian.
Assentes na noção de que o poder judicial é um dos poderes do Estado, em equação com os demais e com um perfil que realça a função de garantia do direito, importa saber em que consiste este poder judicial e quais as características exigíveis à respectiva função.
A independência, será talvez a mais importante. E porquê? Naturalmente por causa da necessidade de conservar uma estrita imparcialidade e uma terciariedade na apreciação e julgamento dos casos concretos. Mas também compaginada com a possibilidade de os juízes poderem ser nomeados por concurso ( e não por eleição), assumirem a posição de funcionários do Estado, capazes de serem gestores de uma função que é pública e que desenvolvem de modo vinculado e sem estarem ainda assim sujeitos a qualquer controlo de mérito nas decisões. Estas noções, são aliás as que resultam do sistema judicial italiano, tendo sido respigadas do sítio do Conselho Superior da Magistratura daquele país.
Esse mesmo Conselho, acolhe os magistrados ditos “ordinários”, os que se acolhem sob a organização do referido Conselho e que abrange a jurisdição penal, promovida pelo ministério público e ainda a civil que abarca os direitos inerentes a relações entre privados ou entre estes e a administração pública.
O sector da jurisdição penal, parte da promoção dos magistrados do ministério público, também eles pertencentes à magistratura ordinária e ao referido Conselho Superior que é único.
Alguém duvida da independência, qualidade, isenção e imparcialidade da magistratura italiana? Acaso houve outro país na Europa, onde foi possível substituir toda uma classe política profundamente corrupta, por efeito de um processo que tomou o nome prosaico de “Mãos Limpas”? Acaso alguém colocou em dúvida a isenção, imparcialidade, independência e autonomia dos magistrados que o instruíram, do ministério público italiano e a dos juízes que depois o julgaram?
Porque é que em Portugal as coisas são diferentes e se assiste actualmente a uma clara ofensiva do poder político contra o poder judicial, com as últimas manifestações, reflectidas numa lei que pretende de algum modo assimilar os magistrados ao funcionalismo público comum?
Principalmente, por que razão especial, continua a haver muitos juízes que se sentem mal acompanhados na respectiva e específica função de julgar, tendo a magistratura do ministério público, estatutaria e profissionalmente, em paralelo?
Como é que se chegou aqui, a este ponto de viragem na estruturação das magistraturas?
O constitucionalista Vital Moreira, em artigo no Público, acaba de desdizer o que escreveu em 1993, ao considerar o Ministério Público, como a segunda componente, pessoal, dos tribunais. Acha agora, que não é assim e que afinal o ministério público pode muito bem integrar-se na função pública mais corrente e comum, ao contrário dos juízes a quem concede quase como que um privilégio de separação.
Como é que o poder político pode interferir mesmo indirectamente, na função judicial que se quer independente. Por vários modos, sendo três deles destacados pela magistratura italiana:
Pela limitação do direito de acção em juízo; pela pressão externa sobre a magistratura e ainda pela criação de juízes especiais.
Estará Portugal a atravessar um período de crise com esse recorte?
Alguns sinais indicam que assim pode suceder. A desjudicialização de alguns assuntos corrente e tidos como comezinhos, a pressão exercida pelo constante confronto com a magistratura, a quem se apontam privilégios imerecidos e que apesar de nem destoarem dos concedidos aos políticos em geral, fazem eco na opinião pública, através da amplificação que recebem dos núncios e malabaristas habituais e ainda a criação de várias instâncias de mediação e a tentativa de controlar o acesso a tribunais superiores com a abertura de lugares a não magistrados de carreira.
Neste contexto que sentido faz, distinguir o ministério público, colocando-o num lugar mais consentâneo com os interesses da Administração política do Estado, retirando-lhe a autonomia que até agora tem sido constitucionalmente assegurada?
A primeira tentativa para tal efeito que se torna evidente, é a mudança no respectivo estatuto, no sentido de lhe retirar o paralelismo com a nagistratura judicial, sob pretextos anunciados: não participarem os magistrados do MP, do exercício do poder judicial. Pergunta-se: na Itália, participam? E isso traz algum problema de divisão de poderes do Estado?
Ou o contrário, com a separação das magistraturas, cortando-se o paralelismo constitui apenas um primeiro passo, para um mais efectivo e real controlo, do poder judicial no seu todo, atenuando o princípio saudavelmente democrático da divisão das funções e poderes do Estado?
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